quinta-feira, 22 de maio de 2014

O retorno da geopolítica

O Estado de São Paulo
Visão Global

Walter Russell Mead

É professor de política externa e humanidades do Bard College, colaborador das revistas ‘Foreign Affairs’ e ‘American Interest’. Os sonhos de que o mundo árabe estaria próximo de uma transformação democrática desapareceram. Hoje, uma visão hegeliana do processo histórico sustentaria que basicamente pouco mudou desde o início do século 19.

Até agora, este ano de 2014 tem sido tumultuado, à medida que as rivalidades geopolíticas retornam tempestuosamente ao centro do cenário global. Sejam as forças russas que confiscam a Crimeia, a China reivindicando agressivamente suas águas costeiras, o Japão respondendo com uma estratégia cada vez mais assertiva ou o Irã tentando usar suas alianças com Síria e Hezbollah para dominar o Oriente Médio, o fato é que jogos de poder anacrônicos voltam a predominar nas relações internacionais.

Para Estados Unidos e União Europeia (UE), pelo menos, essa é uma tendência preocupante. Ambos gostariam de deixar para trás essas disputas geopolíticas de territórios e poder militar e se concentrarem, pelo contrário, em assuntos de ordem mundial e governança global, como a liberalização do comércio, a não proliferação nuclear, direitos humanos, o império da lei, mudanças climáticas e assim por diante. Na verdade, desde o fim da Guerra Fria, o objetivo mais importante da política empreendida por EUA e UE tem sido mudar as relações internacionais de assuntos envolvendo soma zero (em que sempre há um vencedor e um vencido) para aqueles em que todos ganham.

Retornar às disputas ao estilo da velha guarda, como observamos na Ucrânia, não só é um desvio de tempo e energia que poderiam ser consagrados a questões importantes, mas também altera o caráter da política internacional. À medida que a atmosfera fica mais sombria, a tarefa de promover e manter a ordem mundial torna-se mais gigantesca.

Os ocidentais, porém, jamais deveriam ter esperado que a geopolítica obsoleta desaparecesse por completo. Eles agiram assim porque interpretaram de modo totalmente errado o que o colapso da União Soviética significou: o triunfo ideológico da democracia capitalista liberal sobre o comunismo, não a obsolescência do hard power (poder duro, ligado à força militar). China, Irã e Rússia nunca aceitaram como válido o acordo geopolítico firmado após a Guerra Fria e vêm fazendo tentativas cada vez mais contundentes para subvertê-lo.

Esse processo não será pacífico e, mesmo que os revisionistas não vençam, seus esforços já abalaram o equilíbrio de poder e mudaram a dinâmica da política internacional. Numa falsa sensação de segurança quando a Guerra Fria chegou ao fim, as questões geopolíticas mais preocupantes foram em grande parte solucionadas. Com exceção de um punhado de problemas relativamente menos importantes, como os infortúnios da ex-Iugoslávia e a disputa palestino-israelense, as disputas mais contundentes no âmbito da política mundial, eles achavam, não teriam mais relação com fronteiras, bases militares, autodeterminação ou esferas de influência.

Não podemos culpar as pessoas por terem esperança. O enfoque do Ocidente no tocante à realidade do mundo pós-Guerra Fria teve muito sentido e é difícil ver como a paz mundial poderia ser alcançada sem substituir a competição geopolítica pela construção de uma ordem mundial liberal. No entanto, os ocidentais com frequência esquecem que esse projeto se alicerça em bases geopolíticas particulares estabelecidas nos anos 90.

Na Europa, o acordo pós-Guerra Fria envolveu a unificação da Alemanha, o desmembramento da União Soviética, a integração dos antigos Estados do Pacto de Varsóvia e as repúblicas do Báltico na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e na UE. No Oriente Médio, implicou o domínio dos poderes sunitas que foram aliados dos EUA (Arábia Saudita, seus aliados do Golfo, Egito e Turquia) e a dupla contenção de Irã e Iraque. Na Ásia, significou o domínio inconteste dos EUA, implícito numa série de pactos de segurança com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Indonésia e outros aliados.

Guerra de ideias. Esse acordo pós-Guerra Fria refletiu as realidades em termos de poder naquele momento e manteve-se tão estável quanto as relações que o apoiaram. Infelizmente, muitos observadores reuniram as condições geopolíticas temporárias do mundo pós-Guerra Fria como resultado final mais provável da disputa ideológica entre democracia liberal e comunismo soviético.

O famoso conceito do cientista político Francis Fukuyama, de que o fim da Guerra Fria significou “o fim da história”, foi uma formulação sobre ideologia. Mas, para muitas pessoas, o colapso da União Soviética não significou apenas que a disputa ideológica da humanidade havia acabado para sempre; elas entenderam que a própria geopolítica tinha chega do ao fim de modo permanente.

À primeira vista, essa conclusão parece ser apenas uma extrapolação do argumento de Fukuyama e não uma distorção dele. Afinal, a noção de fim da história baseava-se nas consequências geopolíticas das lutas ideológicas desde que o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel assim se expressou no início do século 19.

Para Hegel, foi a Batalha de Jena, em 1806, que pôs fim à guerra de ideias. Para ele, a destruição total do Exército da Prússia por Napoleão Bonaparte naquela rápida campanha representou o triunfo da Revolução Francesa sobre o melhor Exército que a Europa pré-revolucionária produziu. Ela marcou o fim da história, afirmou Hegel, porque, no futuro, somente Estados que adotassem os princípios e as técnicas da França revolucionária seriam capazes de competir e sobreviver.

Adaptado ao mundo pós-Guerra Fria, esse argumento foi adotado para indicar que no futuro os Estados teriam de adotar os princípios do capitalismo liberal para sobreviver. Sociedades comunistas fechadas, como a União Soviética, haviam se mostrado excessivamente não criativas e improdutivas para concorrer econômica e militarmente com Estados liberais. Seus regimes políticos eram também instáveis, uma vez que nenhuma fórmula social além da democracia liberal ofereceria a liberdade e a dignidade necessárias para uma sociedade permanecer estável.

Mais por menos. Para combater o Ocidente com sucesso, você teria de se tornar igual ao Ocidente e, se isto ocorresse, teria se tornado o tipo de sociedade pacifista pusilânime, vacilante, que não luta por praticamente nada.

Os únicos perigos remanescentes para a paz mundial seriam os chamados Estados renegados, como a Coreia do Norte. E, embora tais países tivessem vontade de desafiar o Ocidente, estariam muito incapacitados para isso diante das suas estruturas sociais e políticas obsoletas, não se tornando mais do que simples amolação (salvo se desenvolverem armas nucleares, naturalmente).

Assim, antigos Estados comunistas, como a Rússia, tinham de optar. Aderir à modernização e se transformar em países liberais, abertos e pacíficos ou se agarrar com todas as forças a suas armas e a sua cultura ao mesmo tempo que são ignorados pelo mundo.

De início tudo pareceu funcionar. Com o fim da história, o foco mudou da geopolítica para a teoria econômica do desenvolvimento e a não proliferação, e grande parte da política externa centralizou-se em questões como mudança climática e comércio. A combinação do fim da geopolítica e fim da história ofereceu uma perspectiva especialmente sedutora para os EUA: a noção de que o país poderia começar a colocar menos no sistema internacional e tirar mais. Poderiam enxugar seus gastos com defesa, cortar verbas destinadas ao Departamento de Estado, diminuir sua presença em zonas de conflito no exterior – e o mundo se tornaria mais próspero e mais livre.

Essa ideia seduziu liberais e conservadores nos EUA. O governo do presidente Bill Clinton, por exemplo, reduziu tanto o orçamento do Departamento de Estado quanto o da Defesa e conseguiu convencer o Congresso a manter as contribuições americanas para as Nações Unidas. Ao mesmo tempo, as autoridades políticas presumiam que o sistema internacional sairia mais fortalecido e com maior escopo, continuando ao mesmo tempo favorável aos interesses americanos.

Republicanos neo-isolacionistas, como o ex-parlamentar Ron Paul, do Texas, afirmaram que diante da ausência de desafios geopolíticos sérios, os EUA poderiam reduzir enormemente as despesas militares e a ajuda externa e continuariam a se beneficiar do sistema econômico global.

Depois do 11 de Setembro de 2001, o presidente George W. Bush formulou sua política externa com base na crença de que terroristas do Oriente Médio constituíam um oponente singularmente perigoso e lançou o que, segundo afirmou, seria uma longa guerra contra eles. Sob alguns aspectos, pareceu que o mundo voltava à esfera da história.

No entanto, a crença do governo Bush de que a democracia poderia ser implantada rapidamente no Oriente Médio, a começar pelo Iraque, baseava-se na profunda convicção de que o curso dos acontecimentos favorecia os EUA. De maneira muito diferente, China, Irã e Rússia vêm procurando reformular o status quo.

O presidente Barack Obama formulou sua política externa com a convicção de que a “guerra ao terror” foi exagerada, que a história realmente acabou e, como nos anos Clinton, as grandes prioridades dos EUA eram promover a ordem mundial liberal e não mais insistir na geopolítica clássica.

O governo articulou um programa extremamente ambicioso para corroborar essa ordem: conter o ímpeto do Irã, no sentido de produzir armas nucleares, solucionar o conflito entre israelenses e palestinos, negociar um tratado sobre mudanças climáticas, firmar tratados envolvendo o controle de armamentos com a Rússia, restaurar a confiança junto aos aliados europeus e por fim à guerra no Afeganistão. Ao mesmo tempo, porém, Obama planejava cortes enormes nos gastos de defesa e reduziu a presença dos EUA em cenários-chave mundiais, como Europa e Oriente Médio.

Revisionistas. Um eixo de três males? Todas essas felizes convicções ainda devem ser testadas. Após 25 anos da queda do Muro de Berlim, se nos concentrarmos nas rivalidades entre UE e Rússia sobre a Ucrânia, o que levou Moscou a se apossar da Crimeia; na competição cada vez mais intensa entre China e Japão na Ásia Oriental; ou na incorporação do conflito sectário nas rivalidades internacionais e guerras civis no Oriente Médio, o mundo parece, a cada dia, menos pós-histórico. De maneiras muito diversas, com objetivos muito diferentes, China, Irã e Rússia estão todos opondo resistência ao acordo político que pôs fim à Guerra Fria.

O relacionamento entre essas três potências revisionistas é complexo. No longo prazo, a Rússia teme a ascensão da China. A visão de mundo de Teerã tem pouco em comum com a de Pequim ou de Moscou. Irã e Rússia são países exportadores de petróleo e querem que seu preço aumente. A China é uma grande consumidora de petróleo e quer preços baixos.

A instabilidade política no Oriente Médio pode beneficiar Rússia e Irã, mas implica grandes riscos para a China. Não devemos falar de uma aliança estratégica entre esses países. Com o tempo, se conseguirem corroer a influência dos EUA na Eurásia, as tensões entre eles, provavelmente, aumentarão, e não diminuirão.

O que une essas potências, contudo, é o seu acordo no sentido de que o status quo tem de ser revisto. A Rússia deseja refazer ao máximo o mapa da União Soviética. A China não se contenta com um papel secundário nos assuntos globais, nem aceitará o nível atual de influência dos EUA na Ásia e o status quo territorial nessa região. O Irã deseja substituir a atual ordem no Oriente Médio – liderada pela Arábia Saudita e dominada pelos Estados árabes sunitas – por uma outra centralizada em Teerã.

Líderes dos três países também concordam que o poder dos EUA é o principal obstáculo para alcançar em seus objetivos revisionistas. Sua hostilidade com relação a Washington e sua ordem é tanto ofensiva quanto defensiva; não só esperam que o declínio do poder americano tornará mais fácil para eles reformular a ordem em sua região, mas também se preocupam que Washington possa tentar derrubá-los no caso de a discordância com esses países aumentar.

No entanto, os revisionistas evitam confrontos diretos com os EUA, salvo em raras circunstâncias, quando as probabilidades forem maiores a seu favor (como no caso da invasão da Geórgia pela Rússia, em 2008, e a ocupação e a anexação da Crimeia, este ano). Em vez de continuarem a contestar o status quo, eles buscam debilitar as normas estabelecidas e as relações que as sustentam.

Desde que Obama assumiu a presidência, cada uma dessas potências tem adotado uma estratégia distinta de acordo com suas próprias forças e fraquezas. A China, que está melhor aparelhada entre as três, paradoxalmente, tem sido a mais frustrada. Seus esforços para se afirmar na sua região somente intensificaram os vínculos entre EUA e seus aliados asiáticos e fortaleceram o nacionalismo no Japão.

À medida que os recursos de Pequim aumentam, da mesma maneira aumenta a sua frustração. E também, à medida que o poder da China cresce, também cresce a determinação do Japão e as tensões na Ásia, provavelmente, transbordarão para a política e a economia global.

O Irã, sob muitos aspectos o mais frágil dos três Estados, tem se saído melhor. A invasão do Iraque pelos EUA, combinada com sua retirada do país prematura, permitiu a Teerã estreitar de modo mais profundo e duradouro seus laços com centros de poder importantes ao longo de toda a fronteira iraquiana, fato que mudou o equilíbrio sectário e de poder da região. Na Síria, com a ajuda do seu antigo aliado Hezbollah, Teerã conseguiu mudar o curso dos acontecimentos e reforçar o governo de Bashar Assad diante da forte oposição do governo dos EUA. Esse triunfo da real politik aumentou consideravelmente o poder e o prestígio do Irã. Em toda a região, a Primavera Árabe debilitou os regimes sunitas, fazendo pender ainda mais a balança em favor do Irã. Daí a crescente divisão entre os governos sunitas sobre o que fazer com relação à Irmandade Muçulmana e suas ramificações e seguidores.                      

A Rússia, por seu lado, surgiu como uma revisionista mediana: mais poderosa do que o Irã, porém mais frágil do que a China. Mais bem sucedida do que a China no campo da geopolítica, mas menos bem-sucedida do que o Irã. A Rússia tem sido moderadamente eficaz em provocar atritos entre Alemanha e EUA. No entanto, o objetivo do presidente Vladimir Putin de reconstruir a União Soviética é limitado pelo poder econômico do seu país. Para criar um bloco eurasiano, como sonha Putin, a Rússia teria de assumir as contas das ex-repúblicas soviéticas e ela não tem condições para isto.

Velhas rivalidades. Mas, apesar disso, Putin tem conseguido frustrar projetos ocidentais no antigo território soviético. Conteve a expansão da Otan, desmembrou a Geórgia, trouxe a Armênia para sua órbita, aumentou seu controle sobre a Crimeia e a sua aventura ucraniana foi uma surpresa desagradável e humilhante para o Ocidente. Do ponto de vista ocidental, Putin parece estar condenando seu país a um futuro cada vez mais sombrio de pobreza e marginalização.

Putin, porém, não acredita que a história acabou e, segundo sua perspectiva, ele consolidou seu poder internamente e lembrou as potências estrangeiras hostis que o urso russo ainda tem garras afiadas. Obama hoje encontra-se atolado exatamente nas mesmas rivalidades geopolíticas que esperava transcender. As potências revisionistas têm poderes e recursos tão diversos que nenhuma oferece o tipo de oposição global e sistemática que a União Soviética mostrou.

Como resultado, os americanos têm sido lentos em perceber que esses Estados subverteram a ordem geopolítica eurasiana de uma maneira que complicou os esforços europeus e dos EUA para construírem um mundo pós-histórico em que todos ganham. No entanto, podemos ver os efeitos dessa atividade revisionista em muitos lugares. Na Ásia Oriental, a posição cada vez mais assertiva da China ainda não produziu concretamente um grande progresso geopolítico, mas alterou fundamentalmente a dinâmica política da região que temas economias que mais rápido crescem no globo. Hoje, a política asiática se desenvolve em torno de rivalidades nacionais, reivindicações territoriais conflituosas, aumento das forças navais e disputas históricas similares.

O renascimento do nacionalismo no Japão, numa resposta direta aos planos chineses, acarretou um processo em que o nacionalismo em um país alimenta o mesmo nacionalismo no outro. China e Japão estão elevando o tom da sua retórica, aumentando seus orçamentos militares, causando crises bilaterais com maior frequência e cada vez mais fixados numa competição de soma zero.

Embora a UE permaneça num momento pós-histórico, as repúblicas da antiga União Soviética não integradas ao bloco vivem numa era bastante diferente. Nos últimos anos, as esperanças de transformar a antiga União Soviética numa região pós-histórica esvaneceram. A ocupação russa da Ucrânia é apenas a mais recente de uma série de medidas que transformaram a Europa Oriental numa zona de conflito geopolítico e tornou impossível uma governança democrática eficaz e estável fora dos Estados do Báltico e da Polônia. No Oriente Médio, a situação é ainda mais crítica. Os sonhos de que o mundo árabe estaria próximo de uma transformação democrática – sonhos que orientaram a política dos EUA durante os governos Bush e Obama – desapareceram. Em vez de construir uma ordem liberal na região, as autoridades políticas americanas estão às voltas com o fim de um sistema estatal que remonta ao Acordo Sykes-Picot, de 1916, que dividiu as províncias médio-orientais do Império Otomano, à medida que a governança desaparece no Iraque, Líbano e Síria.                     

Obama fez o melhor possível para separar a questão do poder crescente do Irã em toda a região do problema envolvendo o seu respeito ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). No entanto, o temor de sauditas e israelenses quanto às ambições regionais do Irã dificultam essa separação. Outro obstáculo para firmar acordos com o Irã é a Rússia, que tem usado seu assento no Conselho de Segurança da ONU e o apoio a Assad para retardar os objetivos dos EUA na Síria.                      

Estratégico. A Rússia considera sua influência no Oriente Médio um ativo importante na sua competição com os EUA. O que não significa que Moscou se oporá automaticamente aos objetivos americanos em todas as ocasiões, mas indica que o resultado em que todos ganham, buscado pelos americanos com tanto entusiasmo, às vezes, estará refém dos interesses geopolíticos russos.                       

Por exemplo, ao decidir a que ponto deve pressionar a Rússia no tocante à Ucrânia, a Casa Branca não pode deixar de avaliar o impacto da posição russa na guerra da Síria ou o programa nuclear do Irã. A Rússia não pode se tornar um país mais rico ou mais amplo, mas pode acabar sendo um fator importante nos cálculos estratégicos dos EUA e os russos podem usar esse fato para obter concessões que sejam importantes para eles.

Se essas potências revisionistas conquistaram espaço, aquelas que defendem o status quo foram prejudicadas. A deterioração é mais aguda na Europa, onde o desastre implacável da moeda comum dividiu a opinião pública e levou a União Europeia a concentrar-se em si mesma. A UE pode ter evitado algumas consequências piores da crise do euro, mas tanto sua vontade como sua capacidade para uma ação efetiva além das suas fronteiras ficaram debilitadas.

Os EUA não sofreram tanto economicamente como a Europa tem sofrido, mas com o país passando por uma ressaca de política externa induzida pelas guerras iniciadas durante o governo Bush, um Estado de vigilância cada vez mais intrusivo, uma recuperação econômica lenta e uma reforma no sistema de saúde impopular, o ânimo da sociedade diminuiu. Tanto à esquerda como à direita, os americanos questionam os benefícios da atual ordem mundial e a competência dos seus arquitetos.                      

Além disso, a sociedade aceita o consenso da elite no sentido de que em um mundo pós-Guerra-Fria os EUA têm de oferecer menos ao sistema e extrair mais dele. Quando isso não ocorre, as pessoas acusam os seus líderes. De qualquer modo, não se verifica muito entusiasmo em meio à população por grandes e novas iniciativas, tanto interna como externamente, e essa população mais cética vem se distanciando de uma visão polarizada de Washington com um misto de enfado e desdém. Obama assumiu o governo planejando cortar as despesas militares e diminuir a importância da política externa nos EUA e, ao mesmo tempo, fortalecer a ordem mundial liberal. A pouco mais de meio caminho na sua presidência, ele se vê cada vez mais envolvido nessas rivalidades geopolíticas que esperava transcender.                      

O revanchismo chinês, iraniano e russo não desapareceu com o acordo pós-Guerra-Fria na Eurásia e talvez jamais desapareça. No entanto, transformou um status quo inconteste numa situação contestada. Os presidentes americanos não têm mais liberdade quando procuram aprofundar o sistema liberal e estão cada vez mais preocupados em escorar suas bases geopolíticas.                      

Há 22 anos, Fukuyama publicou O Fim da História e o Último Homem e é tentador ver o retorno da geopolítica como uma refutação definitiva da sua tese. A realidade é mais complicada. O fim da história, como Fukuyama lembrou seus leitores, era um conceito de Hegel e, apesar de o Estado revolucionário ter triunfado sobre os velhos tipos de regimes para sempre, segundo Hegel, a competição e o conflito continuariam a existir. Ele previu distúrbios nas províncias, mesmo quando os centros da civilização europeia entravam numa fase pós-histórica. Como as chamadas províncias de Hegel incluíam China, Índia, Japão e Rússia, não surpreende que, mais de dois séculos depois, os distúrbios não cessaram. Estamos vivendo o ocaso da história, mas não o seu fim de fato.

Escrevendo a história. Hoje, uma visão hegeliana do processo histórico sustentaria que basicamente pouco mudou desde o início do século 19. Para se tornarem poderosos, os Estados precisam desenvolver as ideias e instituições que lhes permitirão empregar as forças titânicas do capitalismo industrial e da informação. Não existe alternativa: sociedades incapazes ou que não desejam seguir esse caminho acabarão se tornando objetos da história, não autoras dela.                      

No entanto, o caminho para a pós-modernidade ainda é acidentado. Com vistas a aumentar seu poder, a China, por exemplo, claramente terá de seguir um processo de desenvolvimento econômico e político que exigirá que o país vença os problemas que as sociedades ocidentais modernas também enfrentaram. Não há garantias, porém, de que o caminho da China para uma modernidade liberal estável seja menos tumultuada do que o empreendido pela Alemanha. O ocaso da história não é um momento tranquilo.

A segunda parte do livro de Fukuyama recebeu menos atenção, talvez porque exalte menos o Ocidente. Quando Fukuyama investigou o que seria uma sociedade pós-histórica, fez uma descoberta perturbadora. Num mundo onde as grandes questões foram solucionadas e a geopolítica subordinada à economia, a humanidade se assemelhava muito ao “último homem” niilista descrito pelo filósofo Friedrich Nietzsche: um consumidor narcisista sem maiores aspirações além da sua próxima visita aos centros de compras.

Em outras palavras, essas pessoas seriam muito semelhantes aos burocratas europeus e lobistas de Washington dos dias atuais. São competentes para administrar seus negócios entre os indivíduos pós-históricos, mas compreender os motivos e se opor às estratégias dos políticos de um poder ultrapassado é difícil para eles. Ao contrário de seus rivais menos estáveis e menos produtivos, esses indivíduos não estão dispostos a fazer sacrifícios, estão concentrados no curto prazo, facilmente se desviam do caminho e lhes falta coragem.                      

As realidades da vida política e os indivíduos nas sociedades pós-históricas são muito diferentes daqueles em países como China, Irã e Rússia, onde o sol da história ainda brilha. Não porque essas sociedades diferentes tenham valores e personalidades diferentes diante delas. O fato é que suas instituições também trabalham de modo diferente e a opinião pública desses países é influenciada por ideias distintas. Sociedades em que os últimos homens (e mulheres) de Nietzsche predominam não compreendem e subestimam seus oponentes supostamente primitivos de sociedades supostamente atrasadas – um fato que pode, pelo menos temporariamente, contrabalançar outras vantagens de seus países.                      

O curso da história pode seguir inexoravelmente na direção da democracia capitalista liberal e o sol da história pode estar se pondo atrás das colinas. Mas, mesmo quando as sombras aumentam e as estrelas começam a surgir, figuras como Putin ainda caminham com passos largos no palco mundial. Eles não acolherão tão gentilmente a noite e se queixarão do fim da luz do dia.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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