quinta-feira, 22 de maio de 2014

A ilusão da geopolítica

O Estado de São Paulo
Visão Global

G. John Ikenberry

É colaborador da Foreign Affairs e Professor de Relações Internacionais da Universidade de Princeton

Walter Russell Mead pinta um retrato perturbador das mazelas geopolíticas dos EUA (em artigo republicado no domingo passado pelo Estado). Tal como ele as vê, uma coalizão cada vez mais formidável de potências não liberais - China, Irã e Rússia - está determinada a desmontar o acordo pós-Guerra Fria e a ordem global liderada pelos EUA que o sustenta.

Por toda a Eurásia, ele argumenta, esses Estados insatisfeitos estão propensos a construir esferas de influência para minar os fundamentos da liderança americana e a ordem global. Em vista disso, os EUA precisariam repensar seu otimismo, incluindo sua crença pós-Guerra Fria de que Estados não ocidentais em ascensão podem ser persuadidos a se unir ao Ocidente e jogar pelas suas regras. Para Mead, chegou o momento de enfrentar as ameaças desses inimigos geopolíticos cada vez mais perigosos.

O alarmismo de Mead tem base num equívoco colossal sobre a realidade das potências modernas. A ordem mundial existente é mais estável e expansiva do que Mead retrata. Ele se equivoca sobre China e Rússia, que não são potências revisionistas em plena escala, mas, na melhor das hipóteses, desmancha-prazeres em tempo parcial, tão desconfiadas uma da outra como são do mundo em geral.

É fato que elas buscam oportunidades para resistir à liderança global dos EUA e, recentemente, como no passado, elas a peitaram, particularmente quando confrontadas em suas próprias vizinhanças. No entanto, mesmo esses conflitos são alimentados mais por fraqueza - de seus líderes e seus regimes - do que por força. Elas não têm uma marca atraente. E, no que toca seus interesses dominantes, a Rússia e, em especial a China estão profundamente integradas na economia mundial e em suas instituições governantes.

Mead também caracteriza de maneira equivocada os fundamentos da política externa americana. Desde o fim da Guerra Fria, ele argumenta, os EUA ignoraram questões geopolíticas envolvendo territórios e esferas de influência. Adotaram uma ênfase excessivamente otimista na construção da ordem mundial. Mas essa é uma falsa dicotomia.

Os EUA não se concentram em questões de ordem global, como controle de armas e comércio, por supor que o conflito geopolítico acabou de uma vez por todas; eles empreendem tais esforços precisamente porque querem gerir a competição entre grandes potências. A construção da ordem não tem como premissa o fim da geopolítica, ela diz respeito a como responder às grandes questões da geopolítica.

Aliás, a construção de uma ordem global liderada pelos EUA não começou com o fim da Guerra Fria; ela venceu a Guerra Fria. Nos quase 70 anos desde a 2.ª Guerra, Washington empreendeu esforços contínuos para construir um abrangente sistema de instituições multilaterais, alianças, acordos comerciais e parcerias políticas.

Esse projeto ajudou a atrair países para a órbita dos EUA. Ele ajudou a fortalecer normas e regras globais que questionaram a legitimidade das esferas de influência, tentativas de dominação regional e roubos territoriais ao estilo do século 19. E deu aos EUA as capacidades, parcerias e princípios para enfrentar grandes potências estraga-prazeres e revisionistas de hoje, tal como são. Alianças, parcerias, multilateralismo, democracia - essas são as ferramentas da liderança americana e elas estão vencendo, não perdendo, as disputas do século 21 sobre geopolítica e ordem mundial.

Em 1904, o geógrafo inglês Halford Mackinder escreveu que a grande potência que controlasse o coração da Eurásia comandaria "a Ilha do Mundo" e, com isso, o próprio mundo. Para Mead, a Eurásia voltou a ser o grande prêmio da geopolítica. Nos extremos longínquos de seu supercontinente, ele argumenta, China, Irã e Rússia procuram estabelecer suas esferas de influência e desafiam interesses americanos, tentando lenta, mas inexoravelmente, dominar a Eurásia e, com isso, ameaçar os EUA e o restante do mundo. Essa visão desconsidera uma realidade mais profunda. Em questões de geopolítica (para não mencionar de demografia, de política e de ideias), os EUA têm uma vantagem decisiva sobre China, Irã e Rússia.

Embora os EUA algum dia certamente descerão do pico de hegemonia que ocuparam durante a era unipolar, seu poder continua sem rival. Sua riqueza e vantagens tecnológicas continuam muito fora do alcance de China e Rússia, que dizer do Irã. Sua economia em recuperação, agora fortalecida por novos e volumosos recursos em gás natural, lhes permite manter uma presença militar global e compromissos de segurança confiáveis. Aliás, Washington tem uma habilidade única para ganhar amigos e influenciar Estados.

Segundo um estudo chefiado pelo cientista político Brett Ashley Leeds, os EUA mantêm parcerias militares com mais de 60 países, enquanto a Rússia tem oito aliados formais e a China apenas um (Coreia do Norte). Como me contou um diplomata britânico, "a China não parece fazer alianças". Mas os EUA sim e elas pagam um dividendo duplo: não só fornecem uma plataforma global para a projeção do poder americano, como distribuem a carga de fornecer segurança. A capacidade militar agregada nesse sistema de alianças liderado pelos EUA sobrepuja qualquer coisa que China ou Rússia possam criar nas próximas décadas.

Era atômica. Depois, há as armas nucleares. Essas armas, que EUA, China e Rússia possuem (e o Irã está buscando), ajudam Washington de duas maneiras. Primeiro, graças à lógica da destruição mútua garantida, elas reduzem radicalmente a probabilidade de uma guerra entre grandes potência. Tais confrontos forneceram oportunidades para grandes potências do passado, incluindo os EUA na 2.ª Guerra, firmarem suas próprias ordens internacionais. A era atômica privou a China e a Rússia dessa oportunidade. Segundo, armas nucleares também tornarão China e Rússia mais seguras, dando-lhes uma garantia de que os EUA jamais as invadirão. Isso é uma coisa boa, porque reduz a probabilidade de que elas recorram a medidas desesperadas, nascidas da insegurança, que possam provocar uma guerra e solapar a ordem liberal.

A geografia reforça outras vantagens dos EUA. Como única grande potência não rodeada por outras grandes potências, o país pareceu menos ameaçador a outros Estados e conseguiu ascender dramaticamente ao longo do último século sem provocar uma guerra. Após a Guerra Fria, quando os EUA eram a única superpotência do mundo, outras potências globais, a oceanos de distância, nem sequer tentaram se equiparar a eles. Aliás, a posição geográfica levou outros países a se preocupar mais com abandono do que com domínio. Aliados na Europa, Ásia e Oriente Médio tentaram fazer os EUA jogar um papel maior em suas regiões. O resultado é o que o historiador Geir Lundestad chamou de "império por convite".

A vantagem geográfica dos EUA está plenamente evidente na Ásia. A maioria dos países da região vê a China como um perigo potencial maior - em razão de sua proximidade - do que os EUA. Tirando os EUA, toda grande potência do mundo vive numa vizinhança geopolítica apinhada onde mudanças no poder rotineiramente provocam contramedidas.

A China está descobrindo essa dinâmica com a reação de Estados circundantes que em resposta a sua ascensão estão modernizando suas forças militares e reforçando suas alianças. A Rússia a conheceu há décadas e a enfrentou mais recentemente na Ucrânia, que nos últimos anos vinha aumentando seus gastos militares e tentando estreitar laços com a União Europeia (UE).

O isolamento geográfico também deu aos EUA razão para capitanear a defesa de princípios universais que lhe permitem acesso a várias regiões do mundo. O país promove há muito uma política de porta aberta e o princípio da autodeterminação, e se opôs ao colonialismo - menos por um senso de idealismo do que pelas realidades práticas de manter Europa, Ásia e Oriente Médio abertos ao comércio e à diplomacia.

No fim dos anos 1930, a principal questão que se colocava para os EUA era qual espaço geopolítico, ou "grande área", eles precisariam para existir como grande potência num mundo de impérios, blocos regionais e esferas de influência. A 2.ª Guerra deixou clara a resposta: prosperidade e segurança do país dependiam do acesso a cada região. E nas décadas seguintes, com algumas exceções importantes e danosas, como o Vietnã, os EUA adotaram princípios pós-imperiais.

Foi durante esses anos do pós-guerra que geopolítica e construção da ordem convergiram. Um arcabouço internacional liberal foi a resposta que estadistas como Dean Acheson, George Kennan e George Marshall ofereceram ao desafio do expansionismo soviético. O sistema que eles construíram fortaleceu e enriqueceu os EUA e seus aliados, em detrimento de seus oponentes não liberais. Também estabilizou a economia mundial e estabeleceu mecanismos para enfrentar problemas globais. O fim da Guerra Fria não mudou a lógica por trás desse projeto.

Felizmente, os princípios liberais que Washington promoveu gozam de um apelo quase universal, porque eles tenderam a se ajustar bem às forças modernizadoras do crescimento econômico e do progresso social. Como colocou o historiador Charles Maier, os EUA surfaram a onda de modernização do século 20. Mas alguns disseram que essa congruência entre o projeto americano e as forças da modernidade enfraqueceu nos últimos anos. A crise financeira de 2008, dizem, marcou um ponto crítico da história mundial no qual os EUA perderam seu papel de vanguarda na promoção do progresso econômico.

Mesmo que isso fosse verdade, não seria por isso que a China e a Rússia substituiriam os EUA como paradigmas da economia global. Nem Mead defende que China, Irã ou Rússia oferecem ao mundo um novo modelo de modernidade. Para essas potência não liberais realmente ameaçarem Washington e o restante do mundo capitalista liberal, elas terão de encontrar e surfar a próxima grande onda de modernização. É improvável que o façam.

Democracia. A visão de Mead de uma disputa pela Eurásia entre EUA e China, Irã e Rússia não leva em consideração a transição de poder mais profunda em curso: a crescente ascendência da democracia capitalista liberal. De fato, neste momento, muitas democracias liberais estão às voltas com lento crescimento econômico, desigualdade social e instabilidade política.

Mas a disseminação da democracia liberal pelo mundo, a partir de fins da década de 1970, acelerando-se após a Guerra Fria, fortaleceu dramaticamente a posição dos EUA e endureceu o círculo geopolítico em torno de China e Rússia.

É fácil esquecer como era rara a democracia liberal no passado. Até o século 20, ela estava confinada ao Ocidente e partes da América Latina. Após a 2.ª Guerra, começou a ir além desses domínios à medida que Estados agora independentes estabeleciam sua autodeterminação. Durante os anos 50, 60 e começo dos 70, golpes militares e novos ditadores frearam transições democráticas. Mas no fim dos anos 70, o que o cientista político Samuel Huntington chamou de "a terceira onda" de democratização varreu o sul da Europa, a América Latina e o Leste Asiático. Aí a Guerra Fria terminou, e uma legião de ex-Estados comunistas na Europa Oriental foram trazidos para o redil democrático. Em fins dos anos 90, 60% de todos os países haviam se tornado democracias.

Apesar de alguns retrocessos, a tendência mais significativa tem sido o surgimento de um grupo de potências médias democráticas, entre as quais Austrália, Brasil, Índia, Indonésia, México, Coreia do Sul e Turquia. Essas democracias ascendentes estão agindo como partes interessadas no sistema internacional: promovendo a cooperação multilateral, buscando maiores direitos e responsabilidades, exercendo influências por meios pacíficos.

Tais países levaram a ordem mundial liberal a novas alturas geopolíticas. Como observou o cientista político Larry Diamond, se Argentina, Brasil, Índia, Indonésia, África do Sul e Turquia recuperarem seu equilíbrio econômico e fortalecerem seu regime democrático, o G-20, que também inclui os EUA e países europeus, "se tornará um forte 'clube de democracias', deixando de fora apenas Rússia, China e Arábia Saudita". A ascensão de uma classe média global de Estados democráticos transformou China e Rússia em pontos fora da curva - e não, como Mead teme, legítimos disputantes da liderança global.

Aliás, o crescimento democrático foi extremamente problemático para ambos os países. No Leste Europeu, ex-Estados soviéticos e satélites tornaram-se democráticos e se uniram ao Ocidente. Por preocupantes que possam ter sido as medidas do presidente russo, Vladimir Putin, na Crimeia, elas refletem a vulnerabilidade geopolítica da Rússia e não sua força. Nas duas últimas décadas, o Ocidente foi paulatinamente se aproximando das fronteiras da Rússia.

Em 1999, República Checa, Hungria e Polônia entraram na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Juntaram-se a elas em 2004 outros sete antigos membros do bloco soviético e, em 2009, Albânia e Croácia. Nesse intervalo, seis ex-repúblicas soviéticas tomaram o caminho da participação ao aderir ao programa Partnership for Peace da Otan.

Mead dá muita importância às façanhas de Putin na Geórgia, Armênia e Crimeia. Apesar de Putin estar ganhando algumas pequenas batalhas, ele está perdendo a guerra. A Rússia não está em ascensão; ao contrário, está experimentando uma das maiores contrações geopolíticas de qualquer grande potência na era moderna.

A democracia também está cercando a China. Em meados dos anos 80, Índia e Japão eram as únicas democracias asiáticas, mas de lá para cá, Indonésia, Mongólia, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan e Tailândia entraram no clube. Mianmar deu passos cautelosos rumo a um regime pluripartidário - passos que vieram acompanhados, como a China não deixou de notar, de um aquecimento das relações com os EUA. A China vive hoje, decididamente, numa vizinhança democrática.

Essas transformações políticas puseram a China e a Rússia na defensiva. Considerem-se os recentes desdobramentos na Ucrânia. As correntes econômicas e políticas na maior parte do país estão fluindo inexoravelmente para oeste, uma tendência que apavora Putin. Seu único recurso foi pressionar a Ucrânia para resistir à UE e permanecer na órbita russa. Embora ele possa ser capaz de manter a Crimeia sob controle russo, seu domínio sobre o restante do país está diminuindo.

Como observou o diplomata da UE Robert Cooper, Putin pode tentar retardar o momento em que a Ucrânia "se filiará à UE, nas não pode impedi-lo". Na verdade, Putin pode nem ser capaz de fazer isso, pois suas medidas provocadoras só aceleraram a aproximação da Ucrânia da Europa.

A China enfrenta um problema similar em Taiwan. Dirigentes chineses sinceramente acreditam que Taiwan faz parte da China, mas os taiwaneses não. A transição democrática na ilha tornou as pretensões de independência de seus habitantes mais profundamente sentidas e legítimas. Uma pesquisa de opinião em 2011 revelou que se os taiwaneses pudessem receber garantias de que a China não atacaria Taiwan, 80% deles apoiariam a declaração de independência. Como a Rússia, a China quer o controle geopolítico sobre sua vizinhança. Mas a disseminação da democracia para todos os cantos da Ásia tornou a dominação à moda antiga a única maneira de alcançar isso e essa opção é dispendiosa e autodestrutiva.

Enquanto a ascensão de Estados democráticos torna a vida mais difícil para China e Rússia, ela torna o mundo mais seguro para os EUA. Essas duas potências podem se considerar rivais dos EUA, mas a rivalidade ocorre num campo de jogo muito desigual: os EUA têm mais amigos e os mais capazes também. Washington e seus aliados respondem por 75% dos gastos militares globais. A democratização pôs China e Rússia numa caixa geopolítica.

O Irã não está cercado de democracias, mas é ameaçado por um movimento pró-democracia insubmisso em casa. Mais importante, o Irã é o membro mais fraco do eixo de Mead, com economia e capacidade militar muito menores do que os EUA e as outras grandes potências. Ele é alvo também do mais forte regime de sanções internacionais jamais montado, com ajuda da China e da Rússia.

A diplomacia do governo Obama para o Irã pode ter sido bem-sucedida ou não, mas não está claro o que Mead faria de diferente para impedir o país de conseguir armas nucleares. A abordagem de Obama tem a virtude de oferecer a Teerã um caminho pelo qual ele pode mudar de potência regional hostil para ser um membro não nuclear mais construtivo da comunidade internacional - um fator de mudança de jogo que Mead não analisa.

O revisionismo revisitado por Mead não só subestima a força dos EUA como a ordem que eles construíram. Ele também exagera no grau em que China e Rússia estão buscando resistir. Tirante suas ambições nucleares, o Irã parece um Estado empenhado mais em protestos fúteis do que numa verdadeira resistência, por isso não deve ser considerado próximo de uma potência revisionista.

Sem dúvida, China e Rússia desejam uma maior influência regional. A China exibiu pretensões agressivas a direitos marítimos e ilhas próximas contestadas. Embarcou num reforço de armamentos. Putin pretende reclamar o domínio da Rússia sobre seu "exterior próximo". As grandes potências se eriçam contra a liderança americana e resistem a ela quando podem.

Mas China e Rússia não são verdadeiras revisionistas. Como disse o ex-chanceler israelense Shlomo Ben-Ami, a política externa de Putin é "mais um reflexo de seu ressentimento com a marginalização geopolítica da Rússia do que um grito de guerra de um império em ascensão".

A China, é claro, é uma genuína potência em ascensão e isso convida a uma competição perigosa com aliados americanos na Ásia. Mas a China não está tentando romper essas alianças ou derrubar o sistema mais amplo de governança da segurança regional concretizado na Associação de Nações do Sudeste Asiático e na Cúpula do Leste Asiático. E mesmo que ela abrigasse ambições de eventualmente fazê-lo, as parcerias de segurança americanas na região são, no mínimo, mais fortes, não mais fracas.

China e Rússia são, na melhor hipótese, estraga-prazeres. Elas não têm interesses - para não mencionar ideias, capacidade ou aliados - para levá-las a subverter regras e instituições globais existentes.

Soberania e interesses. Aliás, embora se ressintam de que os EUA estão no topo do sistema geopolítico atual, elas adotam a lógica subjacente desse arcabouço, e por boa razão. A abertura lhes dá acesso a comércio, investimentos e tecnologia de outras sociedades. As regras lhes dão ferramentas para proteger sua soberania e seus interesses. Apesar das controvérsias sobre a nova ideia de "responsabilidade de proteger" (que só tem sido aplicada seletivamente), a ordem mundial atual só preserva normas antigas de soberania de Estado e não intervenção. Aqueles princípios westfalianos continuam sendo a base da política mundial - e a China e a Rússia amarraram neles seus interesses nacionais (apesar do irredentismo perturbador de Putin).

Não deve surpreender, portanto, que China e Rússia tenham se integrado profundamente na ordem internacional existente. Ambas são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com direito de veto, e ambas participam ativamente na Organização Mundial de Comércio (OMC), no Fundo Monetário Internacional (FMI), no Banco Mundial e no G-20. Elas são atores geopolíticos, participando de todos os organismos de peso na governança global.

A China, a despeito de sua rápida ascensão, não tem uma agenda global ambiciosa. Ela continua concentrada em sua situação interna, em preservar o regime do Partido Comunista. Algumas figuras políticas e intelectuais chineses, como Yan Xuetong e Zhu Chenghu, têm uma lista de desejos de objetivos revisionistas. Elas veem o sistema ocidental como uma ameaça e estão à espera do dia em que a China poderá reorganizar a ordem internacional. Mas essas vozes não vão muito além da elite política. Aliás, a liderança chinesa se afastou de seus primeiros apelos a uma mudança radical.

Em 2007, numa reunião de seu Comitê Central, o Partido Comunista Chinês substituiu propostas anteriores de uma "nova ordem econômica internacional" por apelos a reformas mais modestas centradas em equidade e justiça. O pesquisador chinês Wang Jisi argumentou que esse movimento é "sutil, mas importante", mudando a orientação da China para as de uma reformadora global. A China agora deseja um papel maior no FMI e no Banco Mundial, mais influência em fóruns como o G-20 e maior uso global de sua moeda. Essa não é a agenda de um país tentando revisar a ordem econômica.

China e Rússia também são membros em boa posição no clube nuclear. O centro do acordo da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética (e depois a Rússia) foi um esforço compartilhado para limitar armas nucleares. Apesar de as relações russo-americanas terem azedado depois disso, o componente nuclear de seu acordo se manteve. Em 2010, Moscou e Washington assinaram o tratado New Start, que dispõe sobre reduções mútuas em armas nucleares de longo alcance.

Antes dos anos 90, a China era uma estranha no clube nuclear. Apesar de ter um arsenal modesto, ela se via como uma voz do mundo em desenvolvimento não nuclear e criticava os acordos de controle de armas e proibição de testes. Numa mudança notável, a China passou a apoiar o conjunto dos acordos nucleares, incluindo o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares. Ela tem afirmado uma doutrina de "não ser a primeira a usar", tem mantido pequeno seu arsenal e tirou da condição de alerta toda sua força nuclear. A China também jogou um papel ativo na Cúpula de Segurança Nuclear, uma iniciativa proposta por Obama em 2009, e entrou no "processo P5", um esforço cooperativo para proteger essas armas.

Em todo um amplo leque de questões, China e Rússia estão agindo mais como grandes potências estabelecidas do que como revisionistas. Elas com frequência optam por evitar o multilateralismo, mas isso também ocorre com os EUA e outras democracias poderosas. Pequim ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; Washington não.

China e Rússia estão usando regras e instituições globais para defender seus próprios interesses. Suas disputas com os EUA referem-se a ganhar influência dentro da ordem existente e manipulá-la para servir a suas necessidades. Elas querem melhorar suas posições no sistema, mas não estão tentando substituí-lo.

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

O retorno da geopolítica

O Estado de São Paulo
Visão Global

Walter Russell Mead

É professor de política externa e humanidades do Bard College, colaborador das revistas ‘Foreign Affairs’ e ‘American Interest’. Os sonhos de que o mundo árabe estaria próximo de uma transformação democrática desapareceram. Hoje, uma visão hegeliana do processo histórico sustentaria que basicamente pouco mudou desde o início do século 19.

Até agora, este ano de 2014 tem sido tumultuado, à medida que as rivalidades geopolíticas retornam tempestuosamente ao centro do cenário global. Sejam as forças russas que confiscam a Crimeia, a China reivindicando agressivamente suas águas costeiras, o Japão respondendo com uma estratégia cada vez mais assertiva ou o Irã tentando usar suas alianças com Síria e Hezbollah para dominar o Oriente Médio, o fato é que jogos de poder anacrônicos voltam a predominar nas relações internacionais.

Para Estados Unidos e União Europeia (UE), pelo menos, essa é uma tendência preocupante. Ambos gostariam de deixar para trás essas disputas geopolíticas de territórios e poder militar e se concentrarem, pelo contrário, em assuntos de ordem mundial e governança global, como a liberalização do comércio, a não proliferação nuclear, direitos humanos, o império da lei, mudanças climáticas e assim por diante. Na verdade, desde o fim da Guerra Fria, o objetivo mais importante da política empreendida por EUA e UE tem sido mudar as relações internacionais de assuntos envolvendo soma zero (em que sempre há um vencedor e um vencido) para aqueles em que todos ganham.

Retornar às disputas ao estilo da velha guarda, como observamos na Ucrânia, não só é um desvio de tempo e energia que poderiam ser consagrados a questões importantes, mas também altera o caráter da política internacional. À medida que a atmosfera fica mais sombria, a tarefa de promover e manter a ordem mundial torna-se mais gigantesca.

Os ocidentais, porém, jamais deveriam ter esperado que a geopolítica obsoleta desaparecesse por completo. Eles agiram assim porque interpretaram de modo totalmente errado o que o colapso da União Soviética significou: o triunfo ideológico da democracia capitalista liberal sobre o comunismo, não a obsolescência do hard power (poder duro, ligado à força militar). China, Irã e Rússia nunca aceitaram como válido o acordo geopolítico firmado após a Guerra Fria e vêm fazendo tentativas cada vez mais contundentes para subvertê-lo.

Esse processo não será pacífico e, mesmo que os revisionistas não vençam, seus esforços já abalaram o equilíbrio de poder e mudaram a dinâmica da política internacional. Numa falsa sensação de segurança quando a Guerra Fria chegou ao fim, as questões geopolíticas mais preocupantes foram em grande parte solucionadas. Com exceção de um punhado de problemas relativamente menos importantes, como os infortúnios da ex-Iugoslávia e a disputa palestino-israelense, as disputas mais contundentes no âmbito da política mundial, eles achavam, não teriam mais relação com fronteiras, bases militares, autodeterminação ou esferas de influência.

Não podemos culpar as pessoas por terem esperança. O enfoque do Ocidente no tocante à realidade do mundo pós-Guerra Fria teve muito sentido e é difícil ver como a paz mundial poderia ser alcançada sem substituir a competição geopolítica pela construção de uma ordem mundial liberal. No entanto, os ocidentais com frequência esquecem que esse projeto se alicerça em bases geopolíticas particulares estabelecidas nos anos 90.

Na Europa, o acordo pós-Guerra Fria envolveu a unificação da Alemanha, o desmembramento da União Soviética, a integração dos antigos Estados do Pacto de Varsóvia e as repúblicas do Báltico na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e na UE. No Oriente Médio, implicou o domínio dos poderes sunitas que foram aliados dos EUA (Arábia Saudita, seus aliados do Golfo, Egito e Turquia) e a dupla contenção de Irã e Iraque. Na Ásia, significou o domínio inconteste dos EUA, implícito numa série de pactos de segurança com Japão, Coreia do Sul, Austrália, Indonésia e outros aliados.

Guerra de ideias. Esse acordo pós-Guerra Fria refletiu as realidades em termos de poder naquele momento e manteve-se tão estável quanto as relações que o apoiaram. Infelizmente, muitos observadores reuniram as condições geopolíticas temporárias do mundo pós-Guerra Fria como resultado final mais provável da disputa ideológica entre democracia liberal e comunismo soviético.

O famoso conceito do cientista político Francis Fukuyama, de que o fim da Guerra Fria significou “o fim da história”, foi uma formulação sobre ideologia. Mas, para muitas pessoas, o colapso da União Soviética não significou apenas que a disputa ideológica da humanidade havia acabado para sempre; elas entenderam que a própria geopolítica tinha chega do ao fim de modo permanente.

À primeira vista, essa conclusão parece ser apenas uma extrapolação do argumento de Fukuyama e não uma distorção dele. Afinal, a noção de fim da história baseava-se nas consequências geopolíticas das lutas ideológicas desde que o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel assim se expressou no início do século 19.

Para Hegel, foi a Batalha de Jena, em 1806, que pôs fim à guerra de ideias. Para ele, a destruição total do Exército da Prússia por Napoleão Bonaparte naquela rápida campanha representou o triunfo da Revolução Francesa sobre o melhor Exército que a Europa pré-revolucionária produziu. Ela marcou o fim da história, afirmou Hegel, porque, no futuro, somente Estados que adotassem os princípios e as técnicas da França revolucionária seriam capazes de competir e sobreviver.

Adaptado ao mundo pós-Guerra Fria, esse argumento foi adotado para indicar que no futuro os Estados teriam de adotar os princípios do capitalismo liberal para sobreviver. Sociedades comunistas fechadas, como a União Soviética, haviam se mostrado excessivamente não criativas e improdutivas para concorrer econômica e militarmente com Estados liberais. Seus regimes políticos eram também instáveis, uma vez que nenhuma fórmula social além da democracia liberal ofereceria a liberdade e a dignidade necessárias para uma sociedade permanecer estável.

Mais por menos. Para combater o Ocidente com sucesso, você teria de se tornar igual ao Ocidente e, se isto ocorresse, teria se tornado o tipo de sociedade pacifista pusilânime, vacilante, que não luta por praticamente nada.

Os únicos perigos remanescentes para a paz mundial seriam os chamados Estados renegados, como a Coreia do Norte. E, embora tais países tivessem vontade de desafiar o Ocidente, estariam muito incapacitados para isso diante das suas estruturas sociais e políticas obsoletas, não se tornando mais do que simples amolação (salvo se desenvolverem armas nucleares, naturalmente).

Assim, antigos Estados comunistas, como a Rússia, tinham de optar. Aderir à modernização e se transformar em países liberais, abertos e pacíficos ou se agarrar com todas as forças a suas armas e a sua cultura ao mesmo tempo que são ignorados pelo mundo.

De início tudo pareceu funcionar. Com o fim da história, o foco mudou da geopolítica para a teoria econômica do desenvolvimento e a não proliferação, e grande parte da política externa centralizou-se em questões como mudança climática e comércio. A combinação do fim da geopolítica e fim da história ofereceu uma perspectiva especialmente sedutora para os EUA: a noção de que o país poderia começar a colocar menos no sistema internacional e tirar mais. Poderiam enxugar seus gastos com defesa, cortar verbas destinadas ao Departamento de Estado, diminuir sua presença em zonas de conflito no exterior – e o mundo se tornaria mais próspero e mais livre.

Essa ideia seduziu liberais e conservadores nos EUA. O governo do presidente Bill Clinton, por exemplo, reduziu tanto o orçamento do Departamento de Estado quanto o da Defesa e conseguiu convencer o Congresso a manter as contribuições americanas para as Nações Unidas. Ao mesmo tempo, as autoridades políticas presumiam que o sistema internacional sairia mais fortalecido e com maior escopo, continuando ao mesmo tempo favorável aos interesses americanos.

Republicanos neo-isolacionistas, como o ex-parlamentar Ron Paul, do Texas, afirmaram que diante da ausência de desafios geopolíticos sérios, os EUA poderiam reduzir enormemente as despesas militares e a ajuda externa e continuariam a se beneficiar do sistema econômico global.

Depois do 11 de Setembro de 2001, o presidente George W. Bush formulou sua política externa com base na crença de que terroristas do Oriente Médio constituíam um oponente singularmente perigoso e lançou o que, segundo afirmou, seria uma longa guerra contra eles. Sob alguns aspectos, pareceu que o mundo voltava à esfera da história.

No entanto, a crença do governo Bush de que a democracia poderia ser implantada rapidamente no Oriente Médio, a começar pelo Iraque, baseava-se na profunda convicção de que o curso dos acontecimentos favorecia os EUA. De maneira muito diferente, China, Irã e Rússia vêm procurando reformular o status quo.

O presidente Barack Obama formulou sua política externa com a convicção de que a “guerra ao terror” foi exagerada, que a história realmente acabou e, como nos anos Clinton, as grandes prioridades dos EUA eram promover a ordem mundial liberal e não mais insistir na geopolítica clássica.

O governo articulou um programa extremamente ambicioso para corroborar essa ordem: conter o ímpeto do Irã, no sentido de produzir armas nucleares, solucionar o conflito entre israelenses e palestinos, negociar um tratado sobre mudanças climáticas, firmar tratados envolvendo o controle de armamentos com a Rússia, restaurar a confiança junto aos aliados europeus e por fim à guerra no Afeganistão. Ao mesmo tempo, porém, Obama planejava cortes enormes nos gastos de defesa e reduziu a presença dos EUA em cenários-chave mundiais, como Europa e Oriente Médio.

Revisionistas. Um eixo de três males? Todas essas felizes convicções ainda devem ser testadas. Após 25 anos da queda do Muro de Berlim, se nos concentrarmos nas rivalidades entre UE e Rússia sobre a Ucrânia, o que levou Moscou a se apossar da Crimeia; na competição cada vez mais intensa entre China e Japão na Ásia Oriental; ou na incorporação do conflito sectário nas rivalidades internacionais e guerras civis no Oriente Médio, o mundo parece, a cada dia, menos pós-histórico. De maneiras muito diversas, com objetivos muito diferentes, China, Irã e Rússia estão todos opondo resistência ao acordo político que pôs fim à Guerra Fria.

O relacionamento entre essas três potências revisionistas é complexo. No longo prazo, a Rússia teme a ascensão da China. A visão de mundo de Teerã tem pouco em comum com a de Pequim ou de Moscou. Irã e Rússia são países exportadores de petróleo e querem que seu preço aumente. A China é uma grande consumidora de petróleo e quer preços baixos.

A instabilidade política no Oriente Médio pode beneficiar Rússia e Irã, mas implica grandes riscos para a China. Não devemos falar de uma aliança estratégica entre esses países. Com o tempo, se conseguirem corroer a influência dos EUA na Eurásia, as tensões entre eles, provavelmente, aumentarão, e não diminuirão.

O que une essas potências, contudo, é o seu acordo no sentido de que o status quo tem de ser revisto. A Rússia deseja refazer ao máximo o mapa da União Soviética. A China não se contenta com um papel secundário nos assuntos globais, nem aceitará o nível atual de influência dos EUA na Ásia e o status quo territorial nessa região. O Irã deseja substituir a atual ordem no Oriente Médio – liderada pela Arábia Saudita e dominada pelos Estados árabes sunitas – por uma outra centralizada em Teerã.

Líderes dos três países também concordam que o poder dos EUA é o principal obstáculo para alcançar em seus objetivos revisionistas. Sua hostilidade com relação a Washington e sua ordem é tanto ofensiva quanto defensiva; não só esperam que o declínio do poder americano tornará mais fácil para eles reformular a ordem em sua região, mas também se preocupam que Washington possa tentar derrubá-los no caso de a discordância com esses países aumentar.

No entanto, os revisionistas evitam confrontos diretos com os EUA, salvo em raras circunstâncias, quando as probabilidades forem maiores a seu favor (como no caso da invasão da Geórgia pela Rússia, em 2008, e a ocupação e a anexação da Crimeia, este ano). Em vez de continuarem a contestar o status quo, eles buscam debilitar as normas estabelecidas e as relações que as sustentam.

Desde que Obama assumiu a presidência, cada uma dessas potências tem adotado uma estratégia distinta de acordo com suas próprias forças e fraquezas. A China, que está melhor aparelhada entre as três, paradoxalmente, tem sido a mais frustrada. Seus esforços para se afirmar na sua região somente intensificaram os vínculos entre EUA e seus aliados asiáticos e fortaleceram o nacionalismo no Japão.

À medida que os recursos de Pequim aumentam, da mesma maneira aumenta a sua frustração. E também, à medida que o poder da China cresce, também cresce a determinação do Japão e as tensões na Ásia, provavelmente, transbordarão para a política e a economia global.

O Irã, sob muitos aspectos o mais frágil dos três Estados, tem se saído melhor. A invasão do Iraque pelos EUA, combinada com sua retirada do país prematura, permitiu a Teerã estreitar de modo mais profundo e duradouro seus laços com centros de poder importantes ao longo de toda a fronteira iraquiana, fato que mudou o equilíbrio sectário e de poder da região. Na Síria, com a ajuda do seu antigo aliado Hezbollah, Teerã conseguiu mudar o curso dos acontecimentos e reforçar o governo de Bashar Assad diante da forte oposição do governo dos EUA. Esse triunfo da real politik aumentou consideravelmente o poder e o prestígio do Irã. Em toda a região, a Primavera Árabe debilitou os regimes sunitas, fazendo pender ainda mais a balança em favor do Irã. Daí a crescente divisão entre os governos sunitas sobre o que fazer com relação à Irmandade Muçulmana e suas ramificações e seguidores.                      

A Rússia, por seu lado, surgiu como uma revisionista mediana: mais poderosa do que o Irã, porém mais frágil do que a China. Mais bem sucedida do que a China no campo da geopolítica, mas menos bem-sucedida do que o Irã. A Rússia tem sido moderadamente eficaz em provocar atritos entre Alemanha e EUA. No entanto, o objetivo do presidente Vladimir Putin de reconstruir a União Soviética é limitado pelo poder econômico do seu país. Para criar um bloco eurasiano, como sonha Putin, a Rússia teria de assumir as contas das ex-repúblicas soviéticas e ela não tem condições para isto.

Velhas rivalidades. Mas, apesar disso, Putin tem conseguido frustrar projetos ocidentais no antigo território soviético. Conteve a expansão da Otan, desmembrou a Geórgia, trouxe a Armênia para sua órbita, aumentou seu controle sobre a Crimeia e a sua aventura ucraniana foi uma surpresa desagradável e humilhante para o Ocidente. Do ponto de vista ocidental, Putin parece estar condenando seu país a um futuro cada vez mais sombrio de pobreza e marginalização.

Putin, porém, não acredita que a história acabou e, segundo sua perspectiva, ele consolidou seu poder internamente e lembrou as potências estrangeiras hostis que o urso russo ainda tem garras afiadas. Obama hoje encontra-se atolado exatamente nas mesmas rivalidades geopolíticas que esperava transcender. As potências revisionistas têm poderes e recursos tão diversos que nenhuma oferece o tipo de oposição global e sistemática que a União Soviética mostrou.

Como resultado, os americanos têm sido lentos em perceber que esses Estados subverteram a ordem geopolítica eurasiana de uma maneira que complicou os esforços europeus e dos EUA para construírem um mundo pós-histórico em que todos ganham. No entanto, podemos ver os efeitos dessa atividade revisionista em muitos lugares. Na Ásia Oriental, a posição cada vez mais assertiva da China ainda não produziu concretamente um grande progresso geopolítico, mas alterou fundamentalmente a dinâmica política da região que temas economias que mais rápido crescem no globo. Hoje, a política asiática se desenvolve em torno de rivalidades nacionais, reivindicações territoriais conflituosas, aumento das forças navais e disputas históricas similares.

O renascimento do nacionalismo no Japão, numa resposta direta aos planos chineses, acarretou um processo em que o nacionalismo em um país alimenta o mesmo nacionalismo no outro. China e Japão estão elevando o tom da sua retórica, aumentando seus orçamentos militares, causando crises bilaterais com maior frequência e cada vez mais fixados numa competição de soma zero.

Embora a UE permaneça num momento pós-histórico, as repúblicas da antiga União Soviética não integradas ao bloco vivem numa era bastante diferente. Nos últimos anos, as esperanças de transformar a antiga União Soviética numa região pós-histórica esvaneceram. A ocupação russa da Ucrânia é apenas a mais recente de uma série de medidas que transformaram a Europa Oriental numa zona de conflito geopolítico e tornou impossível uma governança democrática eficaz e estável fora dos Estados do Báltico e da Polônia. No Oriente Médio, a situação é ainda mais crítica. Os sonhos de que o mundo árabe estaria próximo de uma transformação democrática – sonhos que orientaram a política dos EUA durante os governos Bush e Obama – desapareceram. Em vez de construir uma ordem liberal na região, as autoridades políticas americanas estão às voltas com o fim de um sistema estatal que remonta ao Acordo Sykes-Picot, de 1916, que dividiu as províncias médio-orientais do Império Otomano, à medida que a governança desaparece no Iraque, Líbano e Síria.                     

Obama fez o melhor possível para separar a questão do poder crescente do Irã em toda a região do problema envolvendo o seu respeito ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). No entanto, o temor de sauditas e israelenses quanto às ambições regionais do Irã dificultam essa separação. Outro obstáculo para firmar acordos com o Irã é a Rússia, que tem usado seu assento no Conselho de Segurança da ONU e o apoio a Assad para retardar os objetivos dos EUA na Síria.                      

Estratégico. A Rússia considera sua influência no Oriente Médio um ativo importante na sua competição com os EUA. O que não significa que Moscou se oporá automaticamente aos objetivos americanos em todas as ocasiões, mas indica que o resultado em que todos ganham, buscado pelos americanos com tanto entusiasmo, às vezes, estará refém dos interesses geopolíticos russos.                       

Por exemplo, ao decidir a que ponto deve pressionar a Rússia no tocante à Ucrânia, a Casa Branca não pode deixar de avaliar o impacto da posição russa na guerra da Síria ou o programa nuclear do Irã. A Rússia não pode se tornar um país mais rico ou mais amplo, mas pode acabar sendo um fator importante nos cálculos estratégicos dos EUA e os russos podem usar esse fato para obter concessões que sejam importantes para eles.

Se essas potências revisionistas conquistaram espaço, aquelas que defendem o status quo foram prejudicadas. A deterioração é mais aguda na Europa, onde o desastre implacável da moeda comum dividiu a opinião pública e levou a União Europeia a concentrar-se em si mesma. A UE pode ter evitado algumas consequências piores da crise do euro, mas tanto sua vontade como sua capacidade para uma ação efetiva além das suas fronteiras ficaram debilitadas.

Os EUA não sofreram tanto economicamente como a Europa tem sofrido, mas com o país passando por uma ressaca de política externa induzida pelas guerras iniciadas durante o governo Bush, um Estado de vigilância cada vez mais intrusivo, uma recuperação econômica lenta e uma reforma no sistema de saúde impopular, o ânimo da sociedade diminuiu. Tanto à esquerda como à direita, os americanos questionam os benefícios da atual ordem mundial e a competência dos seus arquitetos.                      

Além disso, a sociedade aceita o consenso da elite no sentido de que em um mundo pós-Guerra-Fria os EUA têm de oferecer menos ao sistema e extrair mais dele. Quando isso não ocorre, as pessoas acusam os seus líderes. De qualquer modo, não se verifica muito entusiasmo em meio à população por grandes e novas iniciativas, tanto interna como externamente, e essa população mais cética vem se distanciando de uma visão polarizada de Washington com um misto de enfado e desdém. Obama assumiu o governo planejando cortar as despesas militares e diminuir a importância da política externa nos EUA e, ao mesmo tempo, fortalecer a ordem mundial liberal. A pouco mais de meio caminho na sua presidência, ele se vê cada vez mais envolvido nessas rivalidades geopolíticas que esperava transcender.                      

O revanchismo chinês, iraniano e russo não desapareceu com o acordo pós-Guerra-Fria na Eurásia e talvez jamais desapareça. No entanto, transformou um status quo inconteste numa situação contestada. Os presidentes americanos não têm mais liberdade quando procuram aprofundar o sistema liberal e estão cada vez mais preocupados em escorar suas bases geopolíticas.                      

Há 22 anos, Fukuyama publicou O Fim da História e o Último Homem e é tentador ver o retorno da geopolítica como uma refutação definitiva da sua tese. A realidade é mais complicada. O fim da história, como Fukuyama lembrou seus leitores, era um conceito de Hegel e, apesar de o Estado revolucionário ter triunfado sobre os velhos tipos de regimes para sempre, segundo Hegel, a competição e o conflito continuariam a existir. Ele previu distúrbios nas províncias, mesmo quando os centros da civilização europeia entravam numa fase pós-histórica. Como as chamadas províncias de Hegel incluíam China, Índia, Japão e Rússia, não surpreende que, mais de dois séculos depois, os distúrbios não cessaram. Estamos vivendo o ocaso da história, mas não o seu fim de fato.

Escrevendo a história. Hoje, uma visão hegeliana do processo histórico sustentaria que basicamente pouco mudou desde o início do século 19. Para se tornarem poderosos, os Estados precisam desenvolver as ideias e instituições que lhes permitirão empregar as forças titânicas do capitalismo industrial e da informação. Não existe alternativa: sociedades incapazes ou que não desejam seguir esse caminho acabarão se tornando objetos da história, não autoras dela.                      

No entanto, o caminho para a pós-modernidade ainda é acidentado. Com vistas a aumentar seu poder, a China, por exemplo, claramente terá de seguir um processo de desenvolvimento econômico e político que exigirá que o país vença os problemas que as sociedades ocidentais modernas também enfrentaram. Não há garantias, porém, de que o caminho da China para uma modernidade liberal estável seja menos tumultuada do que o empreendido pela Alemanha. O ocaso da história não é um momento tranquilo.

A segunda parte do livro de Fukuyama recebeu menos atenção, talvez porque exalte menos o Ocidente. Quando Fukuyama investigou o que seria uma sociedade pós-histórica, fez uma descoberta perturbadora. Num mundo onde as grandes questões foram solucionadas e a geopolítica subordinada à economia, a humanidade se assemelhava muito ao “último homem” niilista descrito pelo filósofo Friedrich Nietzsche: um consumidor narcisista sem maiores aspirações além da sua próxima visita aos centros de compras.

Em outras palavras, essas pessoas seriam muito semelhantes aos burocratas europeus e lobistas de Washington dos dias atuais. São competentes para administrar seus negócios entre os indivíduos pós-históricos, mas compreender os motivos e se opor às estratégias dos políticos de um poder ultrapassado é difícil para eles. Ao contrário de seus rivais menos estáveis e menos produtivos, esses indivíduos não estão dispostos a fazer sacrifícios, estão concentrados no curto prazo, facilmente se desviam do caminho e lhes falta coragem.                      

As realidades da vida política e os indivíduos nas sociedades pós-históricas são muito diferentes daqueles em países como China, Irã e Rússia, onde o sol da história ainda brilha. Não porque essas sociedades diferentes tenham valores e personalidades diferentes diante delas. O fato é que suas instituições também trabalham de modo diferente e a opinião pública desses países é influenciada por ideias distintas. Sociedades em que os últimos homens (e mulheres) de Nietzsche predominam não compreendem e subestimam seus oponentes supostamente primitivos de sociedades supostamente atrasadas – um fato que pode, pelo menos temporariamente, contrabalançar outras vantagens de seus países.                      

O curso da história pode seguir inexoravelmente na direção da democracia capitalista liberal e o sol da história pode estar se pondo atrás das colinas. Mas, mesmo quando as sombras aumentam e as estrelas começam a surgir, figuras como Putin ainda caminham com passos largos no palco mundial. Eles não acolherão tão gentilmente a noite e se queixarão do fim da luz do dia.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O pânico em torno de Piketty

Por Paul Krugman

O novo livro do economista francês Thomas Piketty, "Capital in the Twenty-First Century" (o capital no Século XXI), é um autêntico fenômeno. Outros livros sobre economia já foram best-sellers, mas a contribuição de Piketty é séria, um estudo que transforma discursos, diferentemente da maior parte dos best-sellers. E os conservadores estão aterrorizados.
Assim, James Pethokoukis, do American Enterprise Institute, adverte no "National Review" que o trabalho de Piketty deve ser refutado, caso contrário, "vai se espalhar entre os intelectuais e remodelar a paisagem política e econômica na qual serão travadas todas as batalhas políticas futuras". Bem, boa sorte nessa empreitada.
O que é realmente impressionante neste debate até agora é que a direita parece incapaz de montar qualquer tipo de contra-ataque substantivo à tese de Piketty. Em vez disso, sua reação tem sido xingar -em particular, chamar Piketty de marxista, assim como qualquer um que considere a desigualdade de renda e riqueza uma questão importante.

Voltarei à questão dos xingamentos em um momento. Primeiro, vamos falar sobre por que o "Capital" está tendo um impacto tão grande.

Piketty não é o primeiro economista a salientar que estamos experimentando um forte aumento da desigualdade, ou até mesmo a enfatizar o contraste entre o lento crescimento da renda para a maioria da população e os rendimentos incríveis no topo. É verdade que Piketty e seus colegas agregaram uma profundidade histórica ao nosso conhecimento, demonstrando que realmente estamos vivendo em uma nova Era Dourada. Mas nós sabemos disso há algum tempo.

Não. O que é realmente novo sobre o "Capital" é a maneira como destrói o mais amado mito dos conservadores, a insistência de que estamos vivendo em uma meritocracia, na qual as grandes fortunas são conquistadas e merecidas.

Nas últimas duas décadas, a resposta conservadora às tentativas de tratar de forma política a questão das maiores rendas envolveu duas linhas de defesa: em primeiro lugar, a negação de que os ricos estão realmente se dando tão bem e o resto tão mal. E quando esta negação falha, eles alegam que essas rendas elevadas são uma recompensa justificada por serviços prestados. Segundo eles, não se deve chamá-las de 1% ou de ricos, mas sim de "geradores de emprego".

Mas como fazer essa defesa, se os ricos derivam grande parte de sua renda não do trabalho que eles fazem, mas dos ativos que possuem? E se as grandes fortunas, cada vez mais, não vêm de empreendimentos, e sim de heranças?

O que Piketty mostra é que estas não são questões menores. As sociedades ocidentais antes da Primeira Guerra Mundial de fato eram dominadas por uma oligarquia de riqueza herdada -e seu livro argumenta convincentemente de que estamos claramente voltando a esse estado.

Então o que os conversadores podem fazer, diante do medo que esse diagnóstico possa ser usado para justificar o aumento de impostos sobre os ricos? Podem tentar refutar Piketty de forma substantiva, mas, até agora, eu não vi nenhum sinal disso. Em seu lugar, como eu disse, há apenas xingamentos.

Isso não deveria ser surpreendente. Estive envolvido em debates sobre a desigualdade de renda por mais de duas décadas e nunca vi os "especialistas" conservadores conseguirem negar os números sem tropeçarem em seus próprios cadarços intelectuais. Ora, é quase como se os fatos fundamentalmente não estivessem do lado deles. Ao mesmo tempo, xingar de vermelho todo mundo que questione qualquer aspecto do dogma do livre mercado tem sido um procedimento padrão da direita, desde que pessoas como William F. Buckley tentaram impedir o ensino da economia keynesiana, não por prová-la errada, mas denunciando-a como "coletivista".

Ainda assim, tem sido incrível assistir os conservadores, um após o outro, denunciarem Piketty como marxista. Até mesmo Pethokoukis, que é mais sofisticado do que o resto, chama o "Capital" de uma obra de "marxismo light", o que só faz sentido se a mera menção à desigualdade de riqueza faça de você um marxista. (Talvez seja assim mesmo a visão deles: recentemente o ex-senador Rick Santorum denunciou o termo "classe média" como "conversa marxista", porque, veja bem, não temos classes nos Estados Unidos.)

E o "Wall Street Journal", em sua crítica ao livro, de forma muito previsível percorre todo esse percurso. De alguma forma, ele consegue comparar a defesa de Piketty da tributação progressiva como forma de limitar a concentração de riqueza -um remédio tão americano quanto a torta de maçã, defendido não apenas por economistas, mas também por políticos, inclusive Teddy Roosevelt- aos males do stalinismo. Isso é realmente o melhor que o "Wall Street Journal" consegue fazer? A resposta, aparentemente, é sim.

Agora, o fato de os apologistas dos oligarcas norte-americanos estarem evidentemente em falta de argumentos coerentes não significa que eles estejam politicamente em fuga. O dinheiro ainda fala -na verdade, em parte graças ao Supremo Tribunal de Roberts, fala mais alto do que nunca. Ainda assim, as ideias também importam, moldando a forma como falamos sobre a sociedade e, eventualmente, a forma como agimos. E o pânico em relação a Piketty mostra que a direita ficou sem ideias.

Tradutor: Deborah Weinberg